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Jovem Cientista | Sonho de infância: bióloga conquistou seu lugar no Butantan pesquisando tratamentos para esclerose múltipla e doença de Chagas

Aos 9 anos, Letícia Corcino tirava fotos em frente ao serpentário do Instituto Butantan; aos 28, com o sonhado crachá no pescoço, ela faz iniciação científica na instituição


Publicado em: 25/10/2024

Com cabeça de jiboia e fosseta de víbora, o Ouroboros tatuado no braço de Leticia Corcino conta uma história: o símbolo da serpente que morde a própria cauda remete à eternidade, ao ciclo da vida. Para a bióloga recém-formada de 28 anos, representa a sua trajetória no Instituto Butantan – um sonho que começou aos 9 anos de idade, durante um passeio familiar, e se concretizou há pouco mais de dois anos com uma oportunidade de iniciação científica. De lá para cá, ela ajudou a validar um novo alvo para tratamento da esclerose múltipla, estudou moléculas de veneno contra a doença de Chagas e foi finalista no Prêmio Jovem Cientista, promovido pelo Instituto.

Letícia entrou na faculdade durante a pandemia de Covid-19, aos 24 anos. Ela trabalhava desde os 15 com vendas e atendimento ao cliente e sempre manteve objetivos claros quanto ao ensino. “Minha família me ensinou muito sobre o valor do trabalho. E eu dizia que, quando pudesse estudar, com certeza seria na área da saúde”, conta. Seu encanto pela ciência e por entender o “porquê das coisas” a fez encarar não só uma, mas duas graduações: enquanto fazia o último semestre de Biologia na Universidade Paulista (UNIP), no início deste ano, ingressou no curso de Farmácia-Bioquímica na mesma instituição.

Letícia aos 9 anos visitava o Butantan já sonhando em se tornar uma cientista do Instituto; aspiração realizada anos depois

“Desde o começo da faculdade de Biologia, eu já pesquisava como fazer estágio no Butantan e quais oportunidades o Instituto oferecia para estudantes”

Foi em uma dessas pesquisas que a estudante encontrou o Laboratório de Dor e Sinalização do Butantan, que chamou sua atenção. Ela manteve contato com a pesquisadora Gisele Picolo, diretora do laboratório, e aguardou por um ano até a abertura de um edital de iniciação científica – era metade de 2020, auge da pandemia, e os editais estavam suspensos. Enfim, em fevereiro de 2022, Letícia vestiu o tão desejado crachá.

Orientada por Gisele, a bióloga teria a missão de validar um novo alvo para o tratamento da esclerose múltipla a partir da análise de genes de modelos animais tratados com a crotoxina, uma toxina do veneno da cascavel. A ideia era verificar por quais vias a terapia melhorava a condição, ou seja, quais genes eram regulados nesse processo. Era um desdobramento do pós-doutorado de Morena Brazil, tecnologista no laboratório – a crotoxina (complexada à sílica CTX-SBA-15) havia evitado a doença em 30 a 40% dos modelos animais, além de ter reduzido a dor. 

A bióloga faz agora faculdade de Farmácia e iniciação científica no Instituto Butantan

 

O alvo identificado foi o neurotransmissor acetilcolina: os animais que apresentaram melhora tiveram aumento de genes de receptores onde esse neurotransmissor atua. O passo seguinte foi encontrar e testar um fármaco que regulasse a mesma via. “Testamos um medicamento que já é usado para tratar outras doenças neurodegenerativas e ele mostrou um efeito semelhante à crotoxina. Obter esse resultado com um remédio que já existe é muito mais vantajoso, pois desenvolver e aprovar uma molécula pode demorar anos”, explica a jovem.

O trabalho lhe rendeu o segundo lugar no Prêmio Jovem Cientista 2023, na categoria Iniciação Científica, concedido durante a Reunião Científica Anual do Butantan. Na ocasião, ela teve a oportunidade de apresentar seu projeto para toda a comunidade de pesquisadores e estudantes do Instituto.

Pesquisa sobre novo alvo para o tratamento da esclerose múltipla lhe rendeu o 2º lugar no Prêmio Jovem Cientista 2023 na categoria Iniciação Científica

 

Para Letícia, poder pesquisar novos tratamentos para a dor tem um grande significado. Ela passou a infância visitando o hospital para ver a mãe, que era internada com frequência devido às fortes dores causadas pelas hérnias. Mais tarde, com curso técnico em Radiologia, a mãe passou a trabalhar em ambiente hospitalar, e a filha acabou se familiarizando com a área.

“Não é uma história feliz, mas tive muito contato com esse universo, e sempre quis entender os porquês da área da saúde, como os medicamentos eram feitos e como eles agiam”

 

Empenhada em conhecer outras linhas de pesquisa do Instituto, Leticia migrou para o Laboratório de Parasitologia em 2023

 

 

Abraçando desafios

A experiência na iniciação científica e o incentivo da orientadora foram imprescindíveis para motivar Leticia no início da nova graduação em Farmácia. Durante um semestre, a cientista equilibrou as três atividades com maestria: de manhã, ia para as aulas de Farmácia; à tarde, vinha para o Butantan; e, à noite, voltava ao campus da faculdade para cursar as últimas matérias de Biologia. Ela ressalta que o apoio familiar foi fundamental nesse processo, bem como os aprendizados em laboratório.

“Sempre quis conhecer mais sobre farmacologia e o Butantan me deu o conhecimento que eu precisava para alcançar essa nova graduação”

Empenhada em conhecer outras linhas de pesquisa do Instituto, Leticia migrou para o Laboratório de Parasitologia em setembro de 2023. Sob orientação da pesquisadora Eliana Nakano, ela testa componentes do veneno e do “sangue” (hemolinfa) da lagarta Lonomia contra o parasita Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas. Foi mais uma chance de ver, de perto, como moléculas naturais podem originar tratamentos – algo que a fascinava desde as aulas de Botânica Econômica na faculdade.

 

A estudante testa componentes do veneno e do “sangue” (hemolinfa) da lagarta Lonomia contra o parasita Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas

 

“Eu pensava: como é possível estudar uma planta, um animal, e descobrir moléculas que têm atividade contra alguma doença? É incrível, a natureza é fantástica”


“Sem os dados, você é só uma pessoa com uma opinião”

É com a famosa frase do estatístico norte-americano Edwards Deming, “pai” da Qualidade, que Leticia reflete sobre o futuro de sua carreira. A menina que cresceu brincando no sítio do avô no interior de São Paulo e queria saber tudo sobre a natureza hoje se encanta com os processos que envolvem a pesquisa de um potencial produto para a saúde.

Tanto que, no futuro, ela deseja trabalhar com a área de Qualidade, responsável por garantir a confiabilidade dos resultados de eficácia e segurança de um fármaco ou de uma vacina. Ela tem feito cursos de qualificação na área, determinada a conquistar uma vaga no Butantan. Para ampliar seus conhecimentos, pretende fazer doutorado direto no Programa de Pós-Graduação em Toxinologia do Instituto.

 

Com pesquisa orientada por dados, Letícia deseja trabalhar com a área de Qualidade, responsável por garantir a confiabilidade dos resultados de eficácia e segurança de fármacos e vacinas

 

“Meu primeiro contato com Qualidade foi no laboratório da Gisele, onde eu entendi a importância do controle dos processos, desde a publicação de um artigo à fabricação de um produto. Se ela não tivesse aberto as portas para mim, jamais teria aprendido tudo isso. Além de orientadora, a Gisele sempre foi colega, amiga, mãe”, ressalta a estudante.

No tempo livre, Letícia gosta de experimentar culinárias diferentes pela noite paulistana com a família e o namorado, e passar tempo com a gata Helena, sua companheira há 13 anos. Também adora ler sobre histórias reais – sua obra favorita é O farmacêutico de Auschwitz. Ficção não é muito sua praia; ela gosta mesmo de dados e fatos – característica que reflete suas escolhas profissionais.

“Se me falassem no início da faculdade que eu validaria um alvo terapêutico, jamais acreditaria. Estou muito empolgada para seguir no Butantan, que era o meu sonho de infância, e poder deixar minhas contribuições”

 

Letícia não se cansa de estudar e pretende fazer doutorado no Programa de Pós-Graduação em Toxinologia do Instituto

 

 

Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Comunicação Butantan e Arquivo pessoal